Manual da Mulher hétero

Letícia Dias
6 min readMay 19, 2020

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Jogue fora, se encontrar por aí.

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Não beba, não fale e não foda. Mas, se quiser, beba, fale e foda.

Rasgue o manual da mulher hétero se encontrá-lo por aí, cuspa em cima e mostre o dedo, gritando: Vão se foder!

“Sou a flor dos campos e o lírio dos vales. Sou a mãe do amor terno, do medo, do conhecimento e da sagrada esperança…Sou a mediadora dos elementos, fazendo com que um entre em comunhão com o outro; o que está quente torno frio e o que está frio, quente; o que está seco faço úmido, e vice-versa; o que está rijo eu amacio…Sou a lei na boca do padre, a palavra do profeta e o conselho do sábio. Mato e dou vida, e ninguém pode escapar às minhas mãos”. Eterno feminino — Fausto Goethe.

Se meditarmos sobre o significado simbólico das imagens das nossas almas e do nosso inconsciente, essas imagens hão de nos conduzir a uma realização plena e a uma melhor compreensão de quem somos, e compreender quem somos é uma viagem sem passagem de volta, graças as deusas.

Talvez antes, mas não muito tempo atrás, essas imagens, das nossas raízes, vivas na alma e no inconsciente estivessem fora da nossa órbita do autoconhecimento, nos empurrando cada vez mais distantes de nós mesmas e nos aproximando a cada segundo dos predadores da autenticidade, banhados pela masculinidade frágil e doentio, que torce e distorce nossos ossos como bonecas de plástico, prontas para sermos colocadas em qualquer prateleira meia boca no fundo da sala de estar, sem luzes acesas.

Uma vez me perguntaram se para fazer parte do movimento que luta pelos diretos da comunidade LGBTQ+ e outros grupos marginalizados precisa ser lésbica, e se o meu ciclo de amizades e conhecidos envolvidos com as discussões são todas pessoas homossexuais. Senti uma gargalhada, vestida de desespero querer sair dos meus pulmões, mas respirei e a minha resposta foi, obviamente, que para apoiar causas, o único requisito é ser e ter uma alma humana, além de acreditar, como um dos pilares primordiais para a sobrevivência, no amor.

Para mim, isso sempre foi o bastante para apoiar quem menos tem apoio nesse mundo nebuloso que certas vezes tenho a sensação de estar retrocedendo, ainda que muitas causas pelas quais luto, como o movimento feminista, que tenho lugar de fala, tenham sido vencidas como pequenas partes da batalha.

Tenho tatuado em minha mente que nossa verdade deve ser dita em alto e bom tom. Gritar, até que nós mesmas escutemos a nossa mensagem, e nunca, em hipótese alguma, deixar de acreditar nos avisos do coração.

A intuição é quase sempre infalível.

Comecei essa escrita, que chamo de compilado de conversas de bar e pensamentos misturados com as páginas dos livros devorados, e que são massacrados nas estantes abarrotadas da minha mente. Esses conteúdos, que passam como num filme na minha cabeça sempre que olho para o céu, ou deito para dormir, imploram para serem organizados em palavras, então começo a contar essa vivência a partir dos próximos parágrafos em uma mistura de formatos, como se as letras saltassem da boca, intrometidas e desordenadas, como costumo ser na vida.

Parte I

Manual da mulher hétero

· Não corte o cabelo; alguns homens não querem mulheres, eles buscam por fadas ou princesas, dessas que saem dos contos infantis, sonolentas e com medo. É sobre acreditar na qualidade das criaturas encantadas, nebulosas, e com uma “sensualidade inocente”, escondida por trás dos longos fios alisados.

· Batom vermelho, nem pensar. É puta demais para uma mulher de respeito.

· Quando estiver transando, finja o orgasmo, nunca diga que poderia ser mais para a esquerda, ou para a direita.

· Não leia sobre o sagrado feminino, seja lá quem for a autora. Isso é para mulheres que se relacionam com outras mulheres.

· Se por um momento pensar nas construções do amor próprio, não fale e muito menos escreva sobre isso.

· Nunca diga que se cansou de viver no arquétipo da princesa.

· Gemer no sexo, só se for com o seu marido.

· Esqueça que tem clitóris.

· Não fale sobre menstruação com as suas amigas.

· Lembre-se que palavrão e mesa de bar não combinam com você.

Leu? Agora volta dez casas, rasgue o manual e mande tudo isso para a casa do caralho! Jogue no abismo com antigos amores, puderes, suas dores e tudo mais que desejar. O alívio é imediato e é preciso antes de continuar, eu garanto.

Parte II

Essa boca você não beija

Essa semana um homem me disse a seguinte frase: “Preciso te confessar uma coisa”. Respondi que ele podia se confessar com risadas, e a confissão, para a minha surpresa foi: “Esses tempos vi uma postagem sua no Instagram e deduzi que você havia assumido a homossexualidade”, respondi que ainda gosto de homens, com uma certa ironia. Acredito que a condição sexual é uma coisa que não muda (deixemos para um outro capítulo as questões relacionadas as descobertas envolvendo a sexualidade, as dificuldades para assumir quem é, entre outros pontos, e seguimos a história). Ele devolveu minha resposta dizendo: “bom saber, pensei que tivesse mudado de time”. Finalizei dizendo que acredito no amor, na liberdade, nas formas de amar e que se eu amasse não seria um problema.

A conversa acabou, levou com ela a minha paciência e deu espaço para as borbulhas de pensamentos, que não são sobre o homem, nem sobre os homens, mas sobre a nossa construção enquanto seres, e os homens fazem parte dessa construção.

Um dia um caçador solitário vê uma linda mulher surgir da densa floresta, do outro lado do rio. Ela acena para ele e canta:

“Oh, vem, solitário caçador do silêncio do crepúsculo.

Vem, vem! Sinto tua falta, sinto tua falta!

Agora vou te abraçar, abraçar!

Vem, vem! Meu ninho está próximo, meu ninho está próximo.

Vem, caçador solitário, vem agora no silêncio do crepúsculo.”

O caçador se despe e atravessa o rio a nado, mas de repente a mulher transforma-se numa coruja e foge, rindo e caçoando dele. Ao nadar de volta para buscar suas roupas, ele se afoga no rio gelado.

“Conto siberiano illustrando a anima Malevola”.

Parte III

Pensamento inacabado

“A consciência é uma aquisição muito recente da natureza e ainda está num estágio “experimental”, li essa frase que complementa os meus pensamentos, mas que não os fazem parar de borbulhar.

São raras as pessoas conscientes de quem são, e isso me parece extremamente doloroso. Ainda estamos caminhando para a naturalização de falar o que pensamos, expressar sentimentos e gostos, dizer sim ou não, levantar questionamentos, agir com sinceridade, ou simplesmente abrir a porta e ir embora quando der vontade. Estamos caminhando em passos lentos, e a chegada as vezes me parece estar cada vez mais longe, é só olharmos ao nosso redor.

A grande questão é que não ter consciência de quem somos nos leva a projetar vivências, medos, preconceitos e todos mais demônios emaranhados, moradores fiéis dos corredores da alma nas pessoas, até quando elas não pedem.

Isso significa que com a quantidade de informações, gente disponível para discutir assuntos diversos e uma série de outras possibilidades oferecidas nos meios de comunicação, grupos e outros ambientes fazem as desculpas para deixar de ouvir e aprender cair no abismo, aquele mesmo abismo que jogamos os amores, puderes e as dores, lembram?

Como pensamentos que não se acabam, mas que aumentam a cada parágrafo e fazem as linhas se estenderem sem previsão de encontrar um final, o que quero dizer, depois de tudo isso, é que ainda faltam muitas, mais do que a gente imagina, e mais do que eu mesma imagino, batalhas para serem vencidas. Até porquê, se pensarmos o feminismo de uma forma interseccional, a minha dor é extremamente diferente da dor de uma série de mulheres que infelizmente, não tem os mesmos privilégios que eu, e que fazem parte de outros subgrupos marginalizados e esquecidos.

É sobre entender e perceber que existe vida além dos padrões implementados pelas pessoas, enraizados e enfiados goelas abaixo. Podemos ser o que quisermos, e não queremos sentir os ossos e peles esmagados dentro de uma caixa que não pedimos.

Percebem que esse papo continua?

Sejamos.

Mulher diaba.

Referências

Ver “The Waste Land”, de T.S. de T.S, nos seus Collect Poems, londres, Faber and Faber, 1963.

O Homem e seus Símbolos, Concepção e organização Carl. G. Jung — nova edição 2016.

Mulheres que correm com os lobos, Clarissa Pinkola Estés, nova edição 2018.

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Letícia Dias

Psicóloga, curiosa, louca por histórias, ler e escrever. Em um longo processo de autoconhecimento, sorrindo por aí enquanto observa a vida correr.