Encontro das águas

Letícia Dias
6 min readMay 21, 2020

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Morte e Renascimento

Carta da Morte — baralho @notrastarot das belíssimas Elisa Riemer @elaysariemis e Paula Mariá Riemer @mysticaeselvagem

A Morte

Parte I

Quando abriu os olhos, a estrangeira se percebeu parada em frente ao portão de sua casa. O tempo estava nublado e o vento gelado parecia cortar a pele. Enquanto olhava de um lado para o outro, confusa, perdida e sonolenta se sentiu voltando de uma longa viagem, mas não se lembrava que dia era, e nem que horas apontavam os ponteiros do relógio.

Tocou a campainha para entrar em casa, depois cruzou os braços em uma tentativa de se esquentar do frio. Sua mãe desceu as escadas para abrir o portão correndo ansiosa, com o olhar profundo de quem quer dizer alguma coisa e não sabe por onde começar.

- Aonde você estava? Tem uma detetive te esperando no seu quarto. Há sangue por toda parte. — Disse atropelando as palavras.

Desnorteada, a estrangeira respirou fundo, e só então percebeu o carro da polícia na calçada. Se deu conta que as janelas da rua, com as luzes apagadas pela monotonia da noite, se acendiam em vizinhos curiosos, querendo entender o que acontecia.

- Só pode ser um pesadelo. — Disse, em voz baixa.

O medo percorria cada centímetro de sua pele, e o coração a qualquer momento sairia pela boca, em sintonia com o desespero. Ela entrou pelo portão e a cada degrau que subia, se esforçava para lembrar de qualquer coisa, afinal, o que poderia ter acontecido em seu quarto? Quanto tempo havia passado fora, sem perceber?

Sua mãe, que minutos atrás descera para abrir o portão, sumiu em meio aos corredores da casa sem dizer mais nada, fazendo as dúvidas mergulharem cada vez mais fundo em sua mente perturbada pelos sentimentos.

- Coragem, coragem, coragem. — Sussurrava.

Quando finalmente entrou no quarto, sua irmã estava sentada na cama encolhida, abraçando os joelhos. Parecia completamente abalada, sem muitas expressões. Pálida.

- Foi você quem matou a mulher? — A detetive perguntou séria encarando a estrangeira enquanto se aproximava dos detalhes espalhados pelo quarto, com sua lupa na mão. Aos poucos, e um passo por vez, chegava cada vez mais perto das provas que buscava.

- Será que eu matei uma mulher? — Murmurava.

A estrangeira sabia que havia matado uma mulher, ela matou com as próprias mãos. Arrancou cada pedaço com a ponta dos dedos e lambeu o sangue da morte. Sentiu as dores do corpo perdendo a vida em seus braços. Não teve dó, nem piedade.

- Fui eu, eu matei. Matei e mataria mil vezes mais. — Gritava a plenos pulmões.

O eco da voz inundou os cômodos da casa e assustou a vizinhança, causando incredulidade e espanto, mas a única expressão vista no rosto da detetive era o esboço de um sorriso de quem se orgulha de colocar um ponto final em um caso sem início, meio e fim.

O corpo, nunca foi encontrado.

PARTE II

Encontro das águas

“O sonho como um meio de comunicação direto, pessoal e significativo com aquele que sonha — um meio de comunicação que usa símbolos comuns a toda a humanidade, mas que os emprega sempre de um modo inteiramente individual, exigindo para a sua interpretação uma “chave”, também inteiramente pessoal”. O Homem e seus Símbolos, Carl G. Jung.

Encorajada pelas profundezas da minha alma, como a sábia e intuitiva Sacerdotisa, que carrega no olhar os mistérios da natureza e protege os reinos do oceano, abro os portões do paraíso, permitindo o encontro das águas, consciência e inconsciente, facilitando a integração com o eu, na busca constante pela totalidade e o processo de individuação.

Começo com o conto “A Morte”, que representa um sonho em que me permito entrar em contato com a outra parte que existe em mim, a energia masculina presente em todos os corpos, em menor ou maior equilíbrio, que chamamos de animus¹. Uma energia necessária para agir com convicção, astúcia, firmeza e certeza. Essa energia, que em alguns mitos aparece como o “demônio da morte”, nessa situação, surge como salvador, em um contexto onde agir é extremamente necessário.

No sonho matei uma mulher, eu a estrangeira, de longe daqui, mas com cidadania para ficar. Fazia algum tempo, eu sabia sobre a necessidade de matar esta mulher. Eu, que nesse contexto apareço simbolizando a força, amansando os leões que representam tudo aquilo que é sentido, principalmente no campo emocional, mato. É como gritar que esta é a hora de dominar o monstro que ruge, sem medo, e enfiar-lhe a faca nas entranhas.

“A estrangeira sabia que havia matado uma mulher, ela matou com as próprias mãos. Arrancou cada pedaço com a ponta dos dedos e lambeu o sangue da morte. Sentiu as dores do corpo perdendo a vida em seus braços. Não teve dó, nem piedade”.

É como se tivesse sido abraçada pela coragem em um confortável mundo onde é permitido crescer. Não existem espaços para a criança ingênua ou sentimentos em desequilíbrio. A necessidade de agradar ao mundo exterior não cabe neste cenário, então a morte, segurando a sua foice, despida e certa de quem é, junto com o seu poder de transformação e a facilidade em fazer reflorescer, corta o cordão. Não existe um corpo, por isso, esse nunca mais se vê.

“O corpo, nunca foi encontrado”.

As incertezas desaparecem como cinzas. Jogadas de uma montanha em uma tarde de sol, elas se juntam ao universo, em um processo que chamo de “transformar”, ao mesmo tempo que as raízes permanecem no solo. Mesmo morta, a mulher deixa suas histórias, que fazem parte da construção, mas que já cumpriram o seu papel.

“Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento nos é revelado por meio dos sonhos, onde se manifesta não como um pensamento racional, mas como uma imagem simbólica”. O Homem e seus Símbolos, Carl G. Jung.

Neste sonho, a minha atual psicóloga aparece como detetive. A figura de um ser maior nessa vivência representa que a analista se encontra em um outro patamar, acima da analisada. Como uma Hierofante, essa figura está sentada em seu trono, representando o poder de estabelecer a comunicação entre céu e terra, em um contexto que é dona do conhecimento, e com a especialização necessária para usar suas ferramentas no processo terapêutico.

- “Foi você quem matou a mulher? — A detetive perguntou séria encarando a estrangeira” (…)

No ambiente terapêutico a analista me questiona, direciona e contribui para que a partir dos meus conteúdos, eu alcance respostas, soluções, mudanças de postura e posicionamentos. Em cada sessão uma gaveta é aberta e revirada, enquanto ela se aproxima com uma lupa daquilo que está guardado, mais que emerge vez ou outra causando dor.

“enquanto se aproximava dos detalhes espalhados pelo quarto com sua lupa na mão” (…)

“Nossa psique faz parte da natureza, e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Depende muito de nós mesmos a nossa sombra tornar-se nossa amiga ou inimiga. A sombra só se torna hostil quando é ignorada ou incompreendida”. O Homem e seus Símbolos, Carl G. Jung

Aos poucos, como guarda-roupas que nunca se esvaziam completamente durante as limpezas, ao não ser que seja hora de mudar de casa, as gavetas se organizam por cores.

Enquanto houver respiro estaremos viajando de olhos abertos ou fechados, então se temos vida, que seja em equilíbrio. Sonhar é abrir espaço para sentir o coração, além de ser uma porta que aos poucos se escancara para nunca mais deixarmos de criar.

Referências

¹animus: personificação masculina do inconsciente na mulher.

O Homem e seus Símbolos, Concepção e organização Carl. G. Jung — nova edição 2016.

Jung e o Tarô, Uma Jornada Arquetípica — Sallie Nichols, com introdução de Laurens Van der Post, agosto de 1988

Nosotras Tarot, Uma Jornada ao Útero Cósmico

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Letícia Dias

Psicóloga, curiosa, louca por histórias, ler e escrever. Em um longo processo de autoconhecimento, sorrindo por aí enquanto observa a vida correr.